Representa-se na obra seguinte ũa prefiguração sobre a regurosa acusação que os ĩmigos fazem a todas as almas humanas, no ponto que per morte de seus terrestes corpos se partem. E por tratar desta matéria põe o autor por figura que no dito momento elas chegam a um profundo braço de mar, onde estão dous batéis: um deles passa pera a glória, o outro pera o inferno. É repartida em três partes: de cada embarcação ũa cena. Esta primeira é da viagem do Inferno. Trata-se polas figuras seguintes: primeiramente, a barca do inferno, Arrais e Barqueiro dela, diabos. Barca do paraíso, Arrais e Barqueiros dela, anjos. Passageiros: Fidalgo, Onzeneiro, Joane, Sapateiro, Frade, Florença, Alcouviteira, Judeu, Corregedor, Procurador, Enforcado, quatro Cavaleiros. Esta prefiguração se escreve neste primeiro livro, nas obras de devação, porque a segunda e terceira parte foram representadas na capela, mas esta primeira foi representada de câmara, pera consolação da muito católica e santa rainha dona Maria, estando enferma do mal de que faleceu, na era do Senhor de 1517.
Companheiro
Em bon’ora logo é feito.
15
Diabo
Oh que caravela esta.
20
Põe bandeiras que é festa
verga alta âncora a pique.
cá vindes vós que cousa é esta?
Fidalgo
Esta barca onde vai ora
25
e há de partir logo ess'hora.
Diabo
Senhor a vosso serviço.
30
Fidalgo
Parece-me isso cortiço.
Diabo
Porque a vedes lá de fora.
Fidalgo
Porém a que terra passais?
Fidalgo
Terra é bem sem sabor.
35
Diabo
Quê? E também cá zombais?
Fidalgo
E passageiros achais
Diabo
Vejo-vos eu em feição
Diabo
Em que esperas ter guarida?
Fidalgo
Que deixo na outra vida
Diabo
Quem reze sempre por ti
45
e tu viveste a teu prazer
que haveis d’ir à derradeira
que assi passou vosso pai.
Fidalgo
Que que que. E assi lhe vai?
segundo lá escolhestes
044b
Pois que já a morte passastes
Fidalgo
Não há aqui outro navio?
60
Diabo
Não senhor que este fretastes
Fidalgo
Que sinal foi esse tal?
Diabo
Do que vós vos contentastes.
65
Fidalgo
A estoutra barca me vou.
Ah barqueiros não m’ouvis?
cuidam cá que sou eu grou.
Anjo
Esta é. Que lhe buscais?
Anjo
Não s’embarca tirania
Fidalgo
Não sei por que haveis por mal
que entre minha senhoria.
85
mui pequena é esta barca.
não há ‘qui mais cortesia?
Venha a prancha e o atavio
90
Anjo
Não vindes vós de maneira
essoutro vai mais vazio
044c
de que éreis tam curioso.
achar-vos-eis tanto menos
Diabo
À barca à barca senhores.
Fidalgo
Ao inferno todavia
Venha essa prancha e veremos
Diabo
Embarque vossa doçura
que cá nos entenderemos.
125
Fidalgo
Mas esperai-me aqui
130
ver minha dama querida
044d
que se quer matar por mi.
Diabo
Que se quer matar por ti?
Fidalgo
Isto bem certo o sei eu.
135
Fidalgo
Era tanto seu querer
Diabo
Quantas mentiras que lias
140
que nam havia mais no bem?
Fidalgo
Isto quanto ò que eu conheço.
com outro de menos preço.
Fidalgo
Dá-me licença te peço
150
Diabo
E ela por não te ver
despenhar-s’-á dum cabeço.
antre seus gritos e gritas 155
foi dar glórias infinitas
Fidalgo
Quant’a ela bem chorou.
Diabo
E não há i choro d’alegria?
Diabo
Sua mãe lhas ensinou.
venha a prancha ponde o pé.
Fidalgo
Entremos pois que assi é.
Diabo
Ora agora descansai
165
Fidalgo
Oh barca como és ardente
Diz o Diabo ao Moço da cadeira:
cousa qu’esteve na igreja
nam s’ há d’embarcar aqui.
À barca à barca boa gente
Diabo
Oh que má hora venhais
Como tardastes vós tanto?
Onzeneiro
Mais quisera eu lá tardar.
me deu Saturno quebranto.
nam vos livrar o dinheiro.
nam me deixaram nem tanto.
Diabo
Ora entrai entrai aqui.
Diabo
Oh que gentil recear
Onzeneiro
Ind’agora faleci
Diabo
Pesar de Jam Pimintel
200
nam cures de mais linguagem. 205
Onzeneiro
Mas pera onde é a passagem?
Vai-se à barca do Anjo e diz:
Anjo
Pois quant’eu bem fora estou
Onzeneiro
Juro a Deos que vai vazio. 220
vinte e seis milhões nũa arca
sabeis vós no que m’eu fundo:
Que aqueloutro marinheiro
230
porque me vê vir sem nada
como arrais lá do Barreiro.
Diabo
Entra entra e remarás
pois que sempre t’ajudou.
Onzeneiro
Oh triste quem me cegou.
240
Entrando no batel diz ao Fidalgo:
Onzeneiro
Santa Joana de Valdês
Diabo
Ouvis? Falai vós cortês.
245
Vós Fidalgo cuidareis
045c
que estais em vossa pousada?
c’um remo que arrenegueis.
Vem um Parvo e diz ao Arrais do Inferno:
Diabo
Entra põe aqui o pé.
que se nos vai a maré.
265
Parvo
Aguardai aguardai lá.
E onde havemos nós d’ir ter?
Diabo
Ao porto de Lucifer.
rachador d’Alverca hu ha.
toma o pão que te caiu.
285
pelourinho da Pampulha
295
Chegando à barca da glória diz:
Parvo
Quereis-me passar além?
Anjo
Tu passarás se quiseres
300
porque em todos teus fazeres
Vem um Sapateiro carregado de formas e diz na barca do inferno:
Santo Sapateiro honrado
310
Mas pera onde é a viagem?
Diabo
Pera a terra dos danados.
Sapateiro
E os que morrem confessados
315
Diabo
Não cures de mais linguagem
que esta é tua barca esta.
Sapateiro
Renegaria eu da festa
tu roubaste bem trinta anos
que há já muito que te espero.
330
Sapateiro
Quantas missas eu ouvi
não m’hão elas de prestar?
Diabo
Ouvir missa então roubar
335
Sapateiro
E as ofertas que darão
Diabo
E os dinheiros mal levados
que foi da satisfação?
340
Ora juro a Deos que é graça. 345
Sapateiro
Não há mercê que me Deos faça?
Anjo
Essa barca que lá está
leva quem rouba de praça.
Sapateiro
Ora eu me maravilho
no cantinho desse leito.
046b
elas foram cá escusadas.
360
Anjo
Escrito estás no caderno
Sapateiro
Pois diabos que aguardais?
365
Vamos venha a prancha logo
pera que é aguardar mais?
Entra um Frade com ũa Moça pola mão e vem dançando, fazendo a baixa com a boca, e acabando diz o Diabo:
Diabo
Que é isso padre que vai lá?
Frade
Deo gracias, sam cortesão. 370
Frade
É mal que m’esquecerá.
Diabo
Essa dama há d’entrar cá?
Diabo
Gentil padre mundanal
que eu nam posso entender isto
tomareis um par de remos.
Diabo
Pois dada está já a sentença.
Diabo
Ora estás bem aviado.
Frade
Mais estás bem corregido.
410
Diabo
Devoto padre e marido
Frade
Mantenha Deos esta coroa.
Diabo
Ó padre frei capacete
cuidei que tínheis barrete.
415
Diabo
Dê vossa reverência lição
Frade
Que me praz. Dêmos caçada:
que todo o al nam é nada. 046d
Quando o recolher se tarda
Guarde-me Deos d’espingarda
como a palha n’albarda.
440
Dêmos outra vez caçada:
445
e um revés da primeira
450
Prossigamos nossa história
dai cá mão senhora Florença
vamos à barca da glória.
460
Chega à barca da glória e diz:
Frade
Senhora dá-me à vontade
Diabo
Padre haveis logo de vir.
e cumpramos a sentença
475
Diabo
Entrai vós e remareis.
Brísida Vaz
Nam é essa barca a qu’eu cato.
Diabo
E trazeis vós muito fato?
Brísida Vaz
O que me convém levar.
Diabo
Que é o que haveis d’embarcar?
que nam podem mais levar.
Diabo
Ora ponde aqui o pé.
505
Brísida Vaz
Ui e eu vou pera o paraíso. 047b
Diabo
E quem te dixe a ti isso?
Brísida Vaz
Lá hei d’ir desta maré.
que ninguém me foi igual.
Se eu fosse ao fogo infernal
A estoutra barca cá em fundo
515
me vou eu que é mais real.
E chegando à barca da glória diz ao Anjo:
Barqueiro mano meus olhos
Anjo
Eu nam sei quem te cá traz.
Cuidais que trago piolhos?
eu sou Brísida a preciosa
que dava as moças òs molhos.
A que criava as meninas
525
olhos de perlinhas finas.
Brísida Vaz
Pois estou-vos alegando
047c
o porque m’haveis de levar.
Brísida Vaz
E que má hora eu servi
pois nam m’há d’aproveitar.
ponde a prancha que eis me vou
550
Diabo
Ora entrai minha senhora
se vivestes santa vida
555
Vem um Judeu com um bode às costas e diz ao Diabo:
Que vai lá ou marinheiro?
Diabo
Oh que má hora vieste.
Diabo
Esta barca é do barqueiro.
560
Judeu
Passai-me por meu dinheiro.
Diabo
E esse bode há cá de vir?
Judeu
O bode também há d’ir.
Diabo
Oh que honrado passageiro.
Judeu
Sem bode como irei lá?
565
Diabo
Pois eu nam passo cabrões.
que me passeis o cabrão.
570
Diabo
Nem tu nam hás de vir cá.
Diabo
E ao Fidalgo quem lhe deu
Parvo
Furtaste a chiba cabrão.
porque hão d’ir descarregados.
Parvo
E s’ele mijou nos finados
595
E comia a carne da panela
cada vez mija na aquela.
600
Vem um Corregedor e diz chegando à barca do inferno:
Corregedor
Está aqui o senhor juiz.
Corregedor
No meu ar conhecereis
Diabo
Como vai lá o dereito?
Diabo
Ora pois entrai veremos
Corregedor
E onde vai o batel?
615
Diabo
No inferno vos poremos.
Corregedor
Como à terra dos demos
há d’ir um corregedor?
048a
Ora entrai pois que viestes.
Corregedor
Non est de regule juris não.
Diabo
Ita ita dai cá a mão
Corregedor
Oh renego da viagem
e de quem m’há de levar.
630
Diabo
Nam há cá tal costumagem.
Diabo
Se ora vos parecesse
635
que nam sei mais que linguagem.
Entrai entrai Corregedor.
tem vosso mando vigor?
640
Corregedor
Domine memento mei.
Diabo
Non es tempus bacharel
quia judicastis malícia.
650
Corregedor
Semper ego in justicia
eram lá percalços seus
048b
ut quid eos non audistis.
Corregedor
Vós Arrais nonne legistis
665
que o dar quebra os penedos?
Diabo
Ora entrai nos negros fados
ireis ao lago dos cães
670
como estão tam prosperados.
Corregedor
E na terra dos danados
Diabo
Os mestres das burlas vistas
675
Vem um Procurador e diz o Corregedor quando o vê:
Procurador
Beijo-vo-las mãos juiz.
Que diz esse Arrais que diz?
Diabo
Que sereis bom remador.
680
Procurador
E este barqueiro zomba
Diabo
Ora estais bem aviado
Corregedor
Confessastes-vos doutor?
048c
Procurador
Bacharel sou dou-me ò demo.
encobri ao confessor.
700
Diabo
Pois por que nam embarcais? 705
Vão-se à barca da glória e diz o Corregedor:
passai-nos nesse batel.
710
Corregedor
Oh habeatis clemência
715
e passai-nos como vossos.
pois nam temos outra ponte.
Diabo
Entrai que cá se dirá.
Entram no batel dos danados e diz o Corregedor a Brísida Vaz:
Corregedor
E vós tornar a tecer
Vem um Enforcado e diz o Diabo:
que diz lá Gracia Moniz?
750
Enforcado
Eu vos direi que ele diz:
que polos furtos que eu fiz
pois morri dependurado
755
até as portas do inferno.
Enforcado
Nam é essa a nau que eu governo.
que os que morrem como eu fiz
E disse que a Deos prouvera 765
049a
e que o senhor m’escolhera
me disse nos meus ouvidos
que o lugar dos escolhidos
775
era a forca e o Limoeiro.
nam tinha mais santa gente
mui mal presta a pregação.
mas quem há d’estar no ar
Diabo
Entra entra no batel
que pera o inferno hás d’ir. 790
Enforcado
E Moniz há de mentir?
Ora já passei meu fado
795
nem barqueiro nem barqueira
porém nam sei que aqui faço
ou se era mentira isto.
049b
Diabo
Falou-te no purgatório?
805
Enforcado
Diz que foi o Limoeiro
Diabo
Ora entra pois hás d’entrar
Enforcado
Entremos pois que assi vai. 815
Diabo
Este foi bom embarcar.
que está em seco o batel.
Vem quatro fidalgos Cavaleiros da Ordem de Cristo que morreram nas partes d’África e vem cantando a quatro vozes a letra que se segue:
se perde a barca da vida.
830
Diabo
Cavaleiros vós passais
Outro Cavaleiro
E vós que nos demandais?
835
morremos nas partes dalém
049c
e nam queirais saber mais.
por Cristo senhor dos céus.
Sois livres de todo mal
049d
santos por certo sem falha
que quem morre em tal batalha
845