À farsa seguinte chamam Auto da Índia. Foi fundado sobre que ũa molher estando já embarcado pera a Índia seu marido lhe vieram dizer que estava desaviado e que já nam ia, e ela de pesar está chorando e fala-lhe ũa sua criada. Foi feita em Almada, representada à muito católica rainha dona Lianor. Era de 1509 anos.
Entram nela estas figuras: Ama, Moça, Castelhano, Lemos, Marido.
Moça
Jesu, Jesu, que é ora isso,
195a
é porque se parte a armada?
eu hei de chorar por isso?
Moça
Por minh’alma que cuidei
5
que choráveis por noss’amo.
Ama
Por qual demo ou por qual gamo,
Dizei-mo, por vida vossa.
que dizem que nam vai já. 15
Moça
Quem diz esse desconcerto?
Moça
S’eles já estão em Restelo
20
Melhor veja eu Jesu Cristo.
Isso é quem porcos há menos.
Ama
Certo é que bem pequenos
são meus desejos que fique.
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Moça
A armada está muito a pique.
Agasta-se-m’o coração
195b
Moça
Eu irei saber se é assim.
35
Vai a Moça e fica a Ama dizendo:
Deos me cumpra o que sonhei. 45
Cantando vem ela, e leda.
Moça
Dai-m’alvíssaras, senhora,
já vai lá de foz em fora.
Moça
Ou, quando ele vier,
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dai-me do que vos trouxer.
Que chegada e que prazer!
Moça
Virtuosa está minha ama,
55
Moça
Falo cá com esta cama.
Ama
E essa cama, bem, que há?
trigo, azeite, mel e panos.
Ama
Mau pesar veja eu de ti,
tu cuidas que nam t’entendo?
Moça
Que entendeis? Ando dizendo
que quem assi fica sem nada, 70
coma vós, que é obrigada...
guarde-me Deos de tal perigo. 85
quando o sangue novo atiça,
Quem sobe por essa escada?
Ama
Vós sois, cuidei que era alguém.
Castelhano
A según eso soy yo nada.
Ama
Bem, que vinda foi ora esta?
100
Castelhano
Vengo aquí en busca mía,
que me perdí en aquel día
que os vi hermosa y honesta.
el cielo imperio es testigo
Y ando un cuerpo sin alma,
un papel que lleva el viento,
110
Pese al día en que nascí,
vos y Dios sois contra mí
y nunca topo el diablo.
115
Ama
Bem sei eu de que me ri.
Castelhano
Reísvos del mal que padezco,
reísvos de mi desconcierto,
reísvos que tenéis por cierto
120
Castelhano
Oh mi vida y mi señora,
tenéis gracia especial
125
Castelhano
Al diablo que lo doy,
qué más piedras preciosas,
No fue él Juan de Zamora.
135
Y aunque la mar se humillara
y el viento me obedeciera
y el cuarto cielo se abriera
Mas como evangelio es esto,
que la India hizo Dios
145
Y sólo por dicha mía,
196a
que anda naquelas tigelas.
Moça
Mas os gatos andam nelas.
155
Castelhano
Cuerpo del cielo con vos,
hablo en las tripas de Dios
y vos habláisme en los gatos.
Ama
Se vós falais desbaratos
soy hombre y siento el pesar.
d’ensangrentar esta espada
en hombres que es perdición.
Ya Dios es importunado
170
Dexé vivo allá en el puerto
y después fuilo a encontrar,
Ama
Vós queríeis ficar cá.
tornareis vós outra vinda
Castelhano
A qué hora me mandáis?
pois sois homem de verdade
190
196b
Castelhano
Sabéis que ganáis en eso?
que aunque tal capa me veis
tengo más que pensaréis,
195
y no lo toméis en grueso.
Bésoos las manos, señora,
voyme, con vuesa licencia,
dai, dai ò demo o ladrão.
Ama
Muito bem me parece ele.
Moça
Nam vos fieis vós naquele
Ama
Já lh’eu tenho prometido.
Ama
Mas antes era escudeiro.
Moça
Seria, mas bem safado.
senam por algum dinheiro.
Ama
Nam é ele homem dessa arte. 215
Ama
Quant’eu nam sei dele parte.
Lemos
Vosso cativo, senhora.
Ama
Jesu, tamanha mesura,
225
Ama
Que foi do vosso passear,
toda a noite nesta rua?
230
Lemos
Achei-vos sempre tam crua
Ama
Foi-se à Índia meu marido,
que se nam fosse a lembrança...
Moça
Dizei já essa mentira.
Ama
... que eu vos nam consentira 240
que lei me dais vós, senhora?
Ama
Meninos que andam brincando
e tiram de quando em quando.
Lemos
Que dizeis, senhora minha?
Ama
Metei-vos nessa cozinha
que me estão ali chamando.
250
que estoy aquí a la vergüenza,
Lemos
Quem é aquele que falava?
260
Ama
O castelhano vinagreiro.
e eu nam tenho que vos dar. 265
Lemos
Vá esta moça à Ribeira
que toda s’ há de gastar.
nam compres, já m’enfastias.
Moça
O que quiserdes comprarei.
Lemos
Se valerem caras não,
Moça
Dais-me um cinquinho, nô mais?
Ama
Vós cantais em vosso siso?
Lemos
Deixai-me cantar, senhora.
Se meu marido aqui nam está 290
que rezão lhe posso eu dar
Castelhano
Reniego de Marenilla,
esto es burla o es burleta,
295
queréis que me haga trompeta
que me oiga toda la villa?
Ama
Entrai vós ali, senhor,
Entrai vós nessoutra casa
Castelhano
Pesar ora de san Pablo,
esto es burla o es diablo.
305
Ama
E eu posso-vos mais fazer?
Castelhano
Y aún en eso está ahora
la vida de Juan de Zamora.
que no tardará media hora.
Ama
Meu irmão cuidei que se ia.
Castelhano
Ah señora, y reísvos vos,
ábrame, cuerpo de Dios.
197a
Ama
Tornareis cá outro dia.
315
no eches la casa en tierra
ni hagas tan cruda guerra
que mueras como Sansón.
320
Por la sangre soberana
325
Ama
Pera que é essa jura tanta?
Quiero destruir el mundo,
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quemar la casa, es la verdad,
después quemar la ciudad.
Señora, en esto me fundo.
cuando allá con él me viere,
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Castelhano
Séame Dios testigo,
340
que vos veréis lo que digo
antes que pasen tres días.
praza à virgem consagrada.
345
Tudo está a vosso prazer
350
Oh, que mesuras tamanhas.
Moça
Quantas artes quantas manhas
que sabe fazer minha ama:
um na rua outro na cama.
355
Ama
Que falas, que t’arreganhas?
197b
que agora vai em dous anos
que eu fui lavar os panos
além do Chão d’Alcami.
360
que partiu Tristão da Cunha.
Ama
Quant’eu ano e meo punha.
Moça
Mas três e mais haverá.
Ama
Vai tu comprar de comer,
370
Ama
Mas que graça que seria
375
que ele havia de morrer
380
Moça
Ai, senhora, venho morta,
Moça
A Garça em que ele ia
vem com mui grande alegria,
gordo que é pera espantar.
Ama
Pois casa se t’eu caiar
395
Quebra-me aquelas tigelas
e três ou quatro panelas
197c
que nam ache em que comer.
Que chegada e que prazer.
400
Fecha-me aquelas janelas.
Deita essa carne esses gatos,
desfeitos estão os tratos.
405
Ama
Por que nam matas o fogo?
Moça
Digo que o matarei logo.
410
Ama
Gracioso se quer fazer,
Moça
É noss’amo, como rima.
Marido
Abraçai-me minha prima.
Ama
Jesu, quam negro e tostado. 420
Marido
E eu a vós si porque espero
Ama
Moça, tu que estás olhando?
faze fogo, vai por vinho,
enquanto estamos falando.
Ama
E eu, oh, quanto chorei
quando a armada foi de cá.
que começastes de partir,
Jesu, eu fiquei finada,
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a alma se me queria sair.
Marido
E nós, cem léguas daqui,
sudoeste e oés-sudoeste
440
Ama
Foi isso à quarta feira,
Marido
Si, e começou n’alvorada.
Ama
E eu fui-me de madrugada
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nunca cuidou ver tal pranto.
455
Marido
Durou-nos três dias.
Ama
As minhas três romarias,
com outras mais de quarenta.
mil choros, mil orações.
470
Ama
Juro-vos que de saudade
porque vinha bom mandado.
sabei que é viver perdido.
lá faríeis vós das vossas
Marido
Lá vos digo que há fadigas,
tantas mortes, tantas brigas,
e perigos descompassados
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que assi vimos destrocados,
Ama
Porém, vindes vós mui rico.
um milhão, vos certifico.
Calai-vos que vós vereis
198b
quam louçã haveis de sair.
disso que me vós dizeis.
505
Pois que vós vivo viestes
que quero eu de mais riqueza?
de vós, senhor, que mo trouxestes.
A nau vem bem carregada?
510
Marido
Vem tam doce, embandeirada.
Ama
Vamo-la, rogo-vo-lo, ver.
Marido
Far-vos-ei nisso prazer?
Ama
Si, que estou muito enfadada.
Vão-se a ver a nau e fenece esta primeira farsa.